segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Rosário



“... olhar para dentro com a calma e a honestidade necessárias seria perigoso. Queremos garantia onde não há nenhuma, sem perceber que o imprevisível pode nos levar a um lugar mais interessante.” Eliane Brum

Mas é preciso ter coragem para dar o passo seguinte... Steve Jobs tinha esta coragem. E você?

                                       Rosário 
        
Rosto de lua cheia. Ficou assim depois dos dois filhos paridos. Parece que a barriga subiu para a cara. Cara de lua manchada de nuvens escuras. Não gostava de espelho, por isto nem se importou quando o maiorzinho quebrou o pequeno espelho da mesinha de quarto. Espelho pra quê? Era sempre a mesma coisa refletida... dava um desânimo danado desta vida... Cara que não mudava nem quando chovia nem quando fazia sol. Acho que era por isso que o João andava desacorçoado comigo. Quando conheci ele não era assim não... Ta certo que já era Rosário, mais a lida era pouca... As contas do terço não pesavam tanto...
Era só prosa. Olho no olho. Ai vieram as bulinação. O jeito foi mãe dá uma cama de casal pra nós. No início era bom. Ele ia trabalha e eu ficava em casa: cuidava dos meninos porque mãe ajudava pai lá na roça. De noite, quando todo mundo, cansado da lida e os meninos cansado das malinação  dormiam, nós fazíamos a festa. Às vezes, nas noites de lua cheia, naquele mormaço de brisa misturado, a gente brincava lá no quintal: ora na rede...ora no chão. Mais a chuva num vinha... a barriga começou a crescer e a fome a doer. As contas do Rosário começaram a crescer. Aí eu comecei a pensar: Meu nome é Rosário... Então comecei a rezar. Mas nem a reza trouxe a chuva ou fez a barriga murchar. O jeito foi pegar um caminhão, já fora da cidade, pro dono não vê, o motorista leva a gente pra capital. Lá diziam que não faltava serviço nem água.
Na madrugada, Rosário já rezava um terço. Afinal a fome era tanta que chega o menino repuxava as entranhas da barriga. João tinha só dez reais e este não podiam gastar. Na capital iam precisar. João tinha dó de Rosário e dava água para ela. Se continua assim, ela vai acabar rezando um Rosário inteiro antes do amanhecer. O motorista parava nos postos e lambuzava o bigode com pão e ovo. João e Rosário sentiam o cheiro e as entranhas ardendo. Bebiam mais água.
Ave, Maria! Cheia de Graça. Todo sofrimento tem um fim e o Rosário tinha acabado depois de três dias.  A cidade era grande demais, os carros zuniam perto da gente e o povo olhava de banda pra gente. Sabiam que a gente não pertencia àquele lugar. Mas bendito é o fruto do Vosso Ventre... Magra que era... A barriga começou a crescer mais ainda e os tios ricos da capital, davam comida a ela que não acabava mais. Há muito tinham vindo pra capital. Tinham casa com laje, camas com bonitas colchas e muita comida na mesa. Só o quintal que era pequeno. Tinha um muro tão  alto para separar as casas que ninguém falava com vizinho nenhum. Gente esquisita! Parece que tinham vergonha ou medo uns dos outros. E eles diziam: _ Come, Rosário, que é pro menino nasce forte! Primeiro começou uma lua crescente, que aos poucos foi crescendo.... crescendo... Mas não pensava nisso não. Enquanto João trabalhava na chácara, ela cuidava da casa, da roupa, da comida e da barriga crescente. Às vezes dava uma preguiça tão grande, que deitava ali, no chão mesmo, e dormia... Um dia quando acordou a barriga tinha minguado e nunca mais dormiu uma noite inteira. Era o choro da dor de barriga, da dor de ouvido, da dor de garganta, da diarréia, da fila do hospital, da cara feia do médico, da enfermeira enfezada, era a dor de vê gente morrendo na rua de baixo do carro de motorista bêbado, nos becos por causa de dinheiro pouco, no hospital tudo era sujo, tudo era dor... Não dormia mais porque tinha sarampo, catapora, bronquite, gripe, mamadeira, fralda, roupa pra lava, casa pra cuida e João... João ainda queria maliná!
Rosário sentiu que ia minguando por dentro e crescendo por fora. Estava pesada. Não falava, não gritava e nem chorava. Só inchava. Quando achou que ia explodir o outro menino apareceu. Foi aí que ela compreendeu que nunca mais ia livrar-se da cara de lua e nem do Rosário que acompanhava. Ave, Mulher! Cheia de Graça. Bendito é o fruto do Vosso Ventre – Rosário. Amém!... 

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Primavera aqui, outono lá .É tempo de reciclar!


"Um céu cinzento forma o pano de fundo para o tapete outonal de folhas vermelho-amareladas. As relvas
se afiguram frias e molhadas. o outono na Holanda já vai quase pela sua terceira semana e o verão já foi há muito esquecido." Frec Vloo.                                                                                                        

Enquanto isto, eu hiberno por aqui. Ou quem sabe devo me reciclar...

Um parágrafo, uma vida.

Era assim a sua vida; simples e rotineira. Todos os dias, exceto nos fins de semana – porque também era filha de Deus – ficava ali, naquela escola cheia de silêncios pesados e gritarias falantes de jovens que não a enxergavam. Abria o grande saco de lixo e recolhia os papéis picados. Picada também estava a sua vida. A mãe em Salvador, o pai, este nem sabia para onde fora há muitos anos atrás. As irmãs vivem em São Paulo e o irmão fora trancado num hospital de doidos. Abaixava e catava mais papéis; eram coloridos, brancos, pretos, macios, outros nem tanto, alguns lisos outros amassados... Era assim... Ás vezes   tinha momentos coloridos, como aquele em que o Francisco a beijou. Fazia tanto tempo! Mas o preto e amassado tomavam conta de tudo. Abria o saco novamente, tinha mais coisas para recolher: era o lixo, aquilo que ninguém mais queria usar... o resto de tudo. Será que era ela mesma o resto de tudo? (Lembrava de quando era mocinha, e a mulher do Dr. Gervásio chamou-a de lixo imundo...) Ou será que a vida havia lhe reservado somente os restos? Não valia a pena filosofar... Era melhor recolher o lixo... Percebeu quando a professora, uma moça bonita, que estava sempre alegre e sempre dizia bom dia - até para ela, aproximou-se e pediu-lhe os papéis.– iria usá-los nas aulas de artes. Papéis coloridos e picados iriam se transformar em material alternativo. Belos quadros de arte, aqueles amassados e escuros dariam o toque final nos trabalhos. O restante seria reciclado. Saiu com o saco vazio em busca de outros restos... Mas um estranho sentimento de felicidade inundou-a. Há sempre alguém com criatividade bastante para usar os pedaços, os restos jogados fora. Saiu dos corredores para o pátio e sentiu que o sol amarelava o dia. Uma criança passou chispando perto dela, a outra atrás gritou: “Desculpa, dona!”. Pegou a vassoura com mais firmeza, levantou a cabeça e seguiu conversando com aquela sua companheira fiel. O segredo era ser criativa e reciclar...

Foto: Lúcia Boonstra