quarta-feira, 22 de março de 2023

A viagem




                                                                                       

 Tenho 66 anos vividos. Quantos ainda me restam? Não sei. 
 Sou filha de um casal de mineiros que traziam preconceitos bem arraigados dentro de si. Embora, minha mãe fosse mais aberta, não posso dizer que ela era uma rebelde da sua geração. Seguindo-lhes os passos, também me tornei uma pessoa pacata e conformada com os valores e preconceitos recebidos.
 Lembro-me que nos primeiros anos de escola, as carteiras duplas eram ocupadas por duas meninas ou por dois meninos. E as filas de meninos e meninas eram separadas. Quando um de nós extrapolávamos as regras do professor, éramos levados a ficar de pé de frente para o quadro negro. Depois éramos levados a sentar com o sexo oposto. Para as meninas e, para alguns meninos também, aquilo gerava um constrangimento absurdo. Imagina sentar com um menino! Jamais me arrisquei a passar por tal situação! Por favor, não sorriam... 
 Na década de 70, enquanto todas as adolescentes paravam, aos sábados à tarde, em frente à tv, para assistirem o programa da Jovem Guarda; meu pai desligava a televisão enfatizando que "estes cabeludos não prestavam"... Cabeludos e tatuados eram, com certeza, "maconheiros marginais". Meninas que se vestiam de forma extravagante ou com vestidos curtos eram perdidas... Para os homossexuais, verdadeiros "veados ou sapatas", nem haviam palavras para descrevê-los; restavam-lhes o sorriso de mofa e as piadas ácidas. 
 Sem a energia da coragem, enfiei-me nos livros; mas o estrago já estava feito. 
 Lá pelos 36 anos, aventurei-me na minha primeira viagem ao exterior. E imaginem para onde? Amsterdam! Foi aí que aqueles preconceitos começaram a ruir... Nas ruas, percebia pessoas vestidas das mais variadas formas. Eram multicoloridas. Não só as roupas, mas, também,  os cabelos... não eram artistas; eram donas de casa, eram estudantes. Eram homens de negócios! Ninguém os olhava com estranheza. E vi o primeiro casal de homos, por sinal lindíssimos, darem o primeiro beijo. Um beijo de amor, de afeto, de carinho... Apenas um beijo entre dois seres. E vi o casal de tatuados, com  muitas tatuagens, cuidar dos dois filhos com tanta ternura e cuidado que fiquei ali... Parada, admirando... Eram apenas uma família! Os cabeludos formavam grupos nas bibliotecas, em estudos compenetrados; não tinham aparência de drogados. Eram apenas jovens com sorrisos alegres. Nas ruas, aqui e ali, via um senhor engravatado, com um longo rabo de cavalo, segurando sua pasta executiva. E conheci senhoras que se reuniam para tomar um chá e, uma ou outra, fumava o seu "baseado" tranquilamente, sem perder sua compostura em nenhum momento. 
 Foi uma viagem de desconstrução! Depois dessa viagem, comecei a me questionar mais sobre o que me era enfiado goela abaixo, me questionar sobre o julgamento dos outros. A questionar-me: Quem eu era? Em quê eu realmente acreditava?
 Não culpo meus pais; afinal, eram também produtos da sociedade da época. Acredito na evolução em todos os aspectos e sou grata à mesma. 
 Ainda  me surpreendo, fazendo elocubrações sobre as minhas reações e emoções instintivas. Haverá alguma conexão com o que me foi ensinado ou, até mesmo, apenas ouvido? Quantas críticas veladas escutadas não foram guardadas de forma desapercebida? Será que a minha criança interna soube processá-las de forma sábia?
 Hoje, ouvi uma frase de um jovem, linda, e, ao mesmo tempo, triste e profunda. Disse-me ele: Você ilumina as pessoas, mas não se ilumina! 
 Aproveito o silêncio e a solidão noturna, para adentrar o quarto escuro do meu passado. Com ouvidos atentos e uma lanterna fictícia, vou iluminando aquela escuridão do tempo. Vou divisando palavras de censuras,  olhares de desaprovação e julgamentos dissimulados. Vou me desvendando...
 Me pergunto: Que outros tantos preconceitos terei que desconstruir?! Que luzes terei que usar para me iluminar e descobrir quem sou?
 Sorrio por compreender que ainda sou capaz e que possuo esta abertura de querer ver, de querer  aprender. Perceber que a construção de quem sou eu é um processo infinito. Perceber que a cada encontro, que em cada momento ou situação a vida me presenteia com a oportunidade da descoberta de quem sou eu.


 Foto: Lúcia Boonstra